A Experiência Meditativa
“A prática sem sabedoria é cega. A sabedoria sem
prática é fútil.” T. Krishnamacharya
A primeira vez que a maioria de nós ouviu a palavra
“meditação” foi, provavelmente, a partir do viés indiano ou japonês, alicerçada
em tradições como o yoga e o budismo. Porém, se pesquisarmos mais um pouco
veremos a meditação sendo usada também em caminhos religiosos como o Judaísmo
(método de oração chamado de Hitbodedut, tendo como um dos expoentes o Rabino
Nachman) e o Cristianismo (alguns dos religiosos conhecidos que difundiram a
meditação cristã são Thomas Merton, Dom John Main, Dom Lawrence Freeman e Jean
Yves Leloup) e, de forma não-religiosa, em vários sistemas modernos de
exploração da mente e do que é chamado de “autoconhecimento”. A ciência também
tem manifestado interesse no assunto e, assim, tem se ocupado de experiências
relativas a essa prática. Porém, o limite da ciência é grande no que se refere a
essa área. Até a filosofia se apresenta, muitas vezes, bastante resistente a
alguns conceitos mais tradicionais dos caminhos meditativos. Daniel Dennett,
reconhecido filósofo norte-americano, compara a meditação a vários outros
exercícios mentais como a realização de palavras cruzadas e, também, ao sono.
Porém, numa perspectiva menos rasa, a meditação é vista, tradicionalmente, como
um processo que se diferencia dos outros mecanismos meramente mentais.
Meditação, inicialmente, pode ser vista como um processo de
envolvimento da mente com um único objeto. Essa é a porta de entrada. Começamos
nos utilizando de uma mente que tem como hábito se relacionar com vários focos
num curto espaço de tempo e vamos, aos poucos, direcionando sua atenção a um
único objeto previamente escolhido. Da mente que é atraída por uma grande
variedade de estímulos sensoriais, passamos a uma mente que toma as rédeas do
seu direcionamento e se estabelece no objeto de sua escolha consciente. Da visão
apressada e múltipla passamos a uma visão sustentada e única. Eis a base da
preparação da capacidade meditativa. Vamos chamar isso de “unidirecionamento
horizontal”, onde optamos por proteger a relação com um único ponto de atenção
dentre os vários possíveis que se apresentam no mundo à volta. A principal
função dessa etapa é criar em nós a condição de conhecer o objeto com o qual nos
relacionamos, pois, uma vez que só podemos obter um conhecimento não-superficial
de algo a partir de uma relação íntima e de longo prazo, a sustentação da
atenção unidirecionada é essencial. Ou seja, em primeiro lugar, precisamos
resgatar a capacidade de apreciar um objeto específico por um tempo determinado
e a partir de uma escolha consciente. Rubem Alves, em seu texto “Escutatória”,
trata dessa apreciação, dessa atenção viva e comprometida. Ele cita, como base
de reflexão, a seguinte frase de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro) “não é
bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter
filosofia nenhuma”. Que possamos experimentar o sentido das palavras de Caeiro .
A apreciação, a escuta, precisa do tempo e do silêncio para completar a sua
função, para que seja sentida, absorvida e, ao fim, nos transforme.
Ainda assim, “unidirecionamento horizontal” não é tudo.
Precisaremos realizar, a partir daí, o que podemos chamar de “redirecionamento
vertical”, ou seja, nos mover do envolvimento habitual com objetos externos
concretos (fruto da superfície mental sensorial) ao envolvimento com objetos
cada vez mais profundos, internos e não-evidentes. Para isso passamos da
observação do corpo (ou do mundo externo) à observação da respiração, da
observação da respiração à observação da mente. É isso que chamamos de
interiorização. A preparação para a interiorização consiste em conseguir
diminuir minha resposta às distrações e criar intimidade com um único foco
(ainda que o foco pertença ao mundo externo), mas, no seu sentido último,
interiorização consiste em relacionar-se intimamente com um foco interno. E qual
é o foco interno por excelência? O funcionamento da própria mente. É ela que dá
nascimento a nossos pensamentos, desejos, escolhas e ações. Sem a sutil
contemplação da própria mente não há liberdade verdadeira, pois liberdade se dá,
realmente, quando podemos entender as circunstâncias que dão origem à nossa
ação. E as circunstâncias que alimentam nossas ações não são apenas externas, o
que podemos facilmente comprovar ao olhar a diferente reação de duas pessoas
frente a uma mesma situação rotineira. Só podemos exercer liberdade quando
olhamos para dentro e entendemos de onde estão nascendo nossas ações. Muitos dos
sistemas contemplativos ou meditativos apresentam a noção de que, na maior parte
do tempo, somos prisioneiros da ausência desse entendimento. Apesar de,
fundamentalmente, agirmos em busca de paz e felicidade ao longo de nossa vida,
muitas vezes não é esse o fruto de nossas ações, pois elas, em sua maioria, não
nasceram de uma real compreensão desse desejo fundamental que as embasa.
Perturbações internas (imediatistas por natureza) acabam por impelir cegamente o
movimento externo gerando, muitas vezes, resultados danosos e impedindo a
realização da desejada paz. A conclusão a que chegamos é que não há paz possível
quando não somos verdadeiramente conscientes de nós mesmos.
Na comparação de Dennett com as palavras cruzadas, por
exemplo, perde-se a compreensão de que o objetivo da meditação é reconhecer o
funcionamento da própria mente e não apenas usá-la para exercer uma função
cotidiana. Meditação, portanto, não pode ser entendida como um mero exercício da
mente, mas sim como a própria contemplação da mente em exercício. Realizar
palavras cruzadas não me traz conhecimento sobre mim mesmo, sobre como me
estruturo internamente. Uma mente mais hábil é uma das conquistas esperadas no
treinamento em meditação, e essa conquista pode até ser positiva, mas não é o
propósito final. A mente é entendida como um instrumento de percepção do ser
humano e, sendo assim, podemos afirmar que há três formas de utilização da mesma
(isso é válido para qualquer instrumento): o não-uso, o uso positivo e o uso
danoso. Tornar um instrumento mais “afiado” sem gerar clareza e sabedoria não
nos coloca, necessariamente, numa posição melhor. Ao mesmo tempo, ter sabedoria
sem ter a possibilidade de utilizá-la, devido à limitação do instrumento que
está em nossas mãos, não permite que o conhecimento realize seu propósito.
Jorge Luís Knak – Ago/2013